Ao lado dos ritos que abordamos, de certa forma institucionalizados e regulados pela família e pela sociedade, haviam outros ritos específicos, que poderiam configurar uma categoria distinta de passagem ou iniciação.
Embora pudessem acontecer depois de alguma preparação, era comum que esses ritos ocorressem espontâneamente, a partir de uma casualidade que era então tida como propiciada pelos deuses. Estes eram os ritos de iniciação dos xamãs ou dos heróis.
Muitas pessoas, após passarem incólumes por algum tipo de experiência traumática, que poderia ter provocado a sua morte, eram consideradas como pertencendo a uma classe especial. Estados semicomatosos induzidos por doenças, picada de animais peçonhentos, etc, eram normalmente considerados como modificadores da pessoa, que retornaria desses estados possuindo uma nova e mais clara visão do mundo. Essas pessoas, geralmente, eram alçadas à condição de xamãs pela tribo.
Por um outro lado, o contrário também poderia acontecer: dentro do processo normal de treinamento de um xamã, chegava-se a um ponto em que determinadas provas deveriam ser enfrentadas, para que o treinando comprovasse a sua capacidade de enfrentar seus medos e seus próprios limites físicos e mentais. Isolamento, frio, fome, às vezes extremos, eram utilizados nesse sentido.
A idéia aqui, portanto, não era a de rito de passagem simplesmente como transição de um período para outro da vida, mas também como de um estado de consciência para outro. Ou seja: essa forma de rito não depreendia uma idade ou ocasião específica, e nem ao menos uma cerimônia específica. Poderia acontecer a qualquer momento da vida, por acaso ou por escolha própria, e tinha um cunho de transformação de personalidade mais profundo, geralmente associado a uma missão a cumprir, após a iniciação.
O caráter de morte e renascimento nesses ritos era profundamente marcado.
Vê-se tal caráter em diversas lendas de heróis mitológicos, como, por exemplo, no mito egípcio de Osíris, que possui todas as características associadas ao processo das iniciações míticas.
Osíris era uma divindade civilizadora – a ele era atribuída a invenção da escrita e o desenvolvimento da agricultura. No mito, seu corpo é despedaçado e espalhado por todo o Egito; em seguida sua esposa Ísis empreende uma longa busca pelos seus pedaços, e reúne-os para que ele gere com ela seu filho Hórus, que irá prosseguir seu trabalho civilizador. Há de se notar que Ísis, além de esposa, era irmã de Osíris, ou seja: a idéia é que os dois, na verdade, eram duas faces distintas de uma mesma pessoa. Osíris representa o aspecto de nossos conhecimentos prévios que hão de ser desfeitos, ao passo que Ísis representa a parte de nós que realiza a busca e a reconstrução.
Note-se, também, que Osíris (o conhecimento), após ser reconstruído, não permanece existindo, mas apenas cumpre a função de gerar em Ísis um novo ser filho da fusão entre as duas partes. A mensagem, portanto, é: aquele que busca o conhecimento deverá morrer (perder a individualidade, desfazer-se), recolher suas partes através de um árduo e longo trabalho e, por fim, transformar-se em um novo ser, com uma missão a cumprir.
Texto de Jan Duarte sobre iniciações e ritos de passagem.