– Vó?
– Oi?
– Conta de novo a parte que a Branca de Neve ficou frente a frente com o caçador?
– Conto.
Ficou com os dois olhos acesos. Lá se vai o meu sono, pensou a avó.
– A Rainha Má mandou o Caçador levar a Branca de Neve para colher flores, para depois matá-la, você conhece essa parte.
– Conheço.
– Então… quando a princesa estava colhendo as flores e brincando com os passarinhos, de repente fez-se um grande silêncio na floresta. Os bichos começaram a fugir, sentindo o cheiro da morte. O coração do caçador começou a endurecer, e a sua sombra foi crescendo sobre o corpo da princesa. Ele pegou a sua faca mais afiada e mirou bem no coração da moça. Ele já tinha matado um homem, em uma briga na taverna, e ainda se lembrava da expiração do moribundo no seu rosto. Ele calculou um golpe só, que imediatamente lhe tiraria a vida. Branca de Neve pressentiu o perigo, e, ao se virar, sentiu o bafo quente e alcoólico do caçador, deixando-a com vontade de vomitar. É como se toda a sua vida ela tivesse esperado por aquilo. Finalmente o inimigo, a quem ela tanto temera, teria o seu coração entre os dedos… depois de um momento de susto, ela olhou bem fundo nos olhos dele. Se for para morrer, que meus olhos vejam o rosto do meu monstro, o monstro que sempre esteve me esperando atrás da porta…
A menina se escondia sob os lençóis.
– Você está com medo?
– Estou, mas não pára, não …, adoro quando você conta a história desse jeito.
– Branca de Neve sempre teve um pesadelo, desses que se repetem várias noites até a gente fazer xixi na cama de tanto medo: ela via o príncipe ao longe, cantando a sua bela música. Ela ficava toda enlevada, e saía correndo atrás dele. Só que, quanto mais ela corria, mais distante ele ficava… ela gritava, gritava com todos os seus pulmões, mas o príncipe parecia surdo, parecia muito preocupado com as suas coisas para tendê-la, ela corre ainda mais, desesperada…até tropeçar em um galho e cair. Não teve tempo nem de chorar, pois sentiu uma sombra imensa cobrí-la. Quando virou, seu coração ficou congelado pelo olhar de animal de um homem grande e peludo. Ela sentiu o seu hálito forte, enquanto a lâmina de sua faca ía deixando seu coração ainda mais congelado…, na hora em que a ponta metálica começava a entrar no seu peito ela acordava gritando, sentindo um suor gelado banhando o seu corpo.
– AAAAiiiiiiii!
– Gostou dessa parte, não foi?
– Gostei.
– Então, o dia do seu pesadelo se tornar realidade tinha chegado. Ela olhou para os olhos do seu perseguidor, e teve vontade de cuspir na cara dele. Pensou no seu pai, que desaparecera, deixando-a nas mãos daquela Rainha horrível, e finalmente entendeu que a faca que sonhara, que estava apontada para o seu peito, era enviada, mais uma vez pela mulher que a tinha prendido e humilhado em todos aqueles anos. Branca de Neve olhou fundo nos olhos do Caçador, que pela primeira vez, vacilou…
– Ele ficou arrependido?
– Não, minha querida. Ele perdeu a coragem. Ele sempre vira nos olhos de suas presas o medo, e o medo o animava, excitava a sua maldade. O que ele viu nos olhos de Branca de Neve foi um profundo desprezo, um nojo do grande nada que a vida dele se tornara, caçando e enfeitando a sala da Rainha com seus bichinhos indefesos. O caçador enxergou, nos olhos de Branca de Neve, a imagem dele mesmo. Você entende isso?
– Entendo. (Achou estranho isso, mas realmente ela conseguia entender essa passagem difícil).
– O Caçador voltou o seu ódio para a Rainha Má, que o havia transformado em um homem acovardado e servil. Com a ponta da faca, ele apontou o caminho da floresta escura para a princesa. Ele não o fez por pena, ou por coragem, mas para não sentir ainda mais desprezo por si próprio. Ele sabia que uma moça delicada, criada dentro do conforto de rendas e muros do palácio, não conseguiria sobreviver na mata escura. Morreria de fome, certamente, de forma muito mais cruel do que ele planejara. Mas, ainda assim, ela teria uma chance, e ele pensaria que ela teria se salvado e que ele não era tão desprezível assim. Nas suas bebedeiras diárias, ele diria aos seus amigos imundos que salvara a pele da princesa, ao custo de sua vida. Quando os homens da Rainha viessem buscá-lo, ele veria a a faca que antes ele voltara aos bichos e à princesa, finalmente chegar, gelada, para a sua hora. Finalmente, ele seria a caça, e morreria com um sorriso nos lábios, pois perdera, junto com a menina de pele clara, o seu pior inimigo.
– Qual era o pior inimigo dele, vovó?
– O medo, minha querida.
– Vó?
– Oi?
– A gente sempre acaba encontrando com os nossos fantasmas?
– Uma hora ou outra, querida, a gente precisa parar de fugir e aí, olhar os nosso medos e nossos fantasmas bem no fundo dos olhos.
– Isso quer dizer que um dia eu vou ter de entrar naquele buraco que apareceu no sonho?
– Um dia, querida, você vai estar tão cansada de fugir dos seus medos que vai querer entrar no buraco, só para ver o que tem do outro lado.
– Mas não precisa ser hoje, não é?
– Lógico que não, lógico que não.
– Vó?
– Oi?
– Agora você pode me dizer para que serve o medo?
– Posso.
Ficou em suspense, olhando arregalada.
– O medo serve para nos transformar, querida. Todo o dia de sua vida, você vai temer por alguma coisa, vai ter medo de outras. Mas o dia em que você aprender a olhar no olho do seu medo, ele vai passar a te obedecer, e você terá virado uma princesa, a princesa que você sempre foi. Você entendeu?
– Hum-hum.
A menina mal balbuciou sua resposta e já dormia, sem medo de pesadelos.