Num dia de verão, à tardinha, estava deitado ao sol, sobre uma colina, quando adormeci. Sonhei então que acordara num cemitério com as onze batidas do relógio da torre. No vazio escuro do céu procurei o sol, porque acreditava que, por um eclipse solar, a lua o tivesse encoberto. Todos os túmulos estavam abertos, e as portas férreas dos jazigos abriam-se e fechavam-se sob o contato de mãos invisíveis. Nos muros refletiam-se sombras esvoaçantes projetadas por ninguém, e outras, de pé, flutuavam no ar. Nos caixões abertos só dormiam as crianças. Do céu caía em grandes dobras uma neblina cinzenta e abafadora que era puxada por uma sombra enorme, como se fosse uma rede que me ameaçava cada vez mais. Do alto ouvi o rugir de avalanchas distantes e, abaixo de mim, senti o primeiro abalo de um violento terremoto. A igreja era abalada por dois tons dissonantes e contínuos que nela lutavam, esforçando-se em vão para fundirem-se numa harmonia. De vez em quando, um brilho cinzento iluminava os vitrais, derretendo o chumbo e o ferro que pingavam no chão. A rede de neblina e o tremor da terra forçavam-me a entrar no templo, diante de cujo portal dois basiliscos trepados em dois arbustos venenosos olhavam-me fixamente. Caminhava por entre sombras desconhecidas, curvadas pelo peso dos séculos. Tremendo, elas cercavam o altar, e arvava-lhes o peito sem que o coração batesse. Somente um morto que fôra velado na igreja jazia ainda sobre as almofadas sem que o peito lhe arfasse, e seu rosto sorridente espelhava um sonho feliz. Mas, ao entrar um ser vivo, acordou e não sorriu mais. Abriu as pálpebras pesadas, erguendo-as com esforço; não tinha, porém, globo ocular, e no peito ofegante, no lugar do coração, havia uma chaga. Ergueu as mãos e juntou-as para uma oração, mas os braços se alongaram, desprendendo-se do corpo, e as mãos postas caíram ao chão. Na abóbada da igreja encontrava-se o mostrador da eternidade, onde não havia números e o qual era seu próprio ponteiro: apenas um dedo negro apontava para ele, e os mortos queriam ver neta e nobre, com uma expressão de dor infinita, baixou lentamente sobre o altar, e todos os mortos exclamaram:
– Cristo. Não existe Deus?
Ele respondeu:
– Não existe.
Já não arfando somente os peitos, as sombras de todos os mortos estremeceram, desfazendo-se com isso uma após a outra. Cristo prosseguiu:
– Percorri os mundos, subi aos sóis e voei com as vias-lácteas pelos desertos do céu, mas não existe Deus. Desci até onde a existência lança suas sombras, olhei para o abismo e chamei:
– Pai, onde estás?
Ouvi a eterna tempestade que ninguém domina. Lá, no vazio, estava um arco-íris cintilante, sem que um sol o tivesse criado, composto de almas que se despencavam no abismo. E quando ergui os olhos para o mundo imenso, à procura do olhar divino, fitou-me esse com a cavidade ocular vazia. A eternidade jazia sobre o caos, roendo e ruminando-o.
– Continuai gritando tons dissonantes, dispersai assim as sombras, pois Ele não existe!
As sombras descoloridas esvoaçaram como a nablina branca formada pela geada, e que o calor do hálito derreteu. E tudo ficou vazio. Então, numa cena deprimente, chegaram ao templo as crianças mortas que haviam ressuscitado dos túmulos. Prostraram-se diante da figura do altar e disseram:
– Jesus. Não temos pai?
Enquanto lágrimas lhe jorravam dos olhos, ele respondeu:
– Somos todos órfãos, vocês e eu. Estamos sem pai.
Os tons dissonantes soaram mais forte – os muros oscilantes do templo e as crianças desapareceram – e toda a Terra e o sol lhes seguiram – e todo o universo afundou diante dos nossos olhos em sua imensidão – e lá no topo da natureza infinita estava Cristo e olhava para o universo, o qual estava trespassado por mil sóis, como se fosse uma mina escavada dentro da noite eterna, na qual os sóis pareciam lanternas de mineiros e as vias-lácteas veios de prata.
Quando Cristo viu os mundos colidirem, a dança dos fogos-fátuos celestes e os bancos de corais dos corações palpitantes, quando ele viu como um planeta após outro despejava suas almas ardentes no mar dos mortos, como uma esfera flutuante lançava raios de luz sobre as ondas, ele majestosamente, como o maior entre os mortais, ergueu os olhos para o nada e para a imensidão vazia e disse:
– Ó nada imóvel e mudo! Fria e eterna necessidade! Louco acaso! Conheceis isto entre vós? Quando haveis de destroçar a mim e ao universo? Acaso tens consciência do que fazes quando percorres como um furacão as nevascas das vias-lácteas, apagando sol após sol, e quando se apaga o brilho do orvalho dos astros ao passares por eles? Quão só está cada um na imensa cova do universo. Eu estou só e além de mim ninguém existe. Ó Pai! Ó Pai! Onde está teu peito infinito em que eu possa descansar? Se cada um é seu próprio pai e criador, por que não pode ser também seu próprio carrasco? Este ser a meu lado é ainda um homem? Coitado! Vossa curta vida é apenas um suspiro de dor da natureza ou apenas seu eco – um espelho côncavo lança os seus raios através das nuvens poeirentas de cinzas dos mortos sobre a terra, e então surgis vós, imagens nubladas e vacilantes. Olha para o abismo sobre o qual pairam nuvens de cinzas. A neblina emana do mar dos mortos: o futuro é a neblina que sobe, o presente é a que desce. Reconheces teu mundo?
Cristo baixou os olhos, que se encheram de lágrimas ao dizer:
– Em tempos passados, vim a esse mundo; então, ainda era feliz, pois tinha meu Pai Eterno, olhava contente das montanhas para o céu imenso, apertava contra o peito transpassado sua imagem suavizante, e pude dizer ainda ao sofrer a morte amarga: “Pai, livra o teu filho do invólucro sangrento do corpo e ergue-o para junto do teu coração!” … Vós ainda podeis acreditar Nele, felicíssimos moradores da Terra. Talvez agora, na vossa Terra, seja a hora do por do sol quando caís de joelhos entre flores ensolaradas, com lágrimas nos olhos, e ergueis as mãos abençoadas, derramando lágrimas de alegria, e rezais ao céu aberto: “Também a mim conheces, Pai Eterno,assim como meus ferimentos e depois da morte me receberás para curar todos eles”. » Ó infelizes, depois da morte não sereis consolados. Se um de vós, infelizes, se deitar de costas esfoladas na terra e adormecer na esperança de uma manhã mais bela, cheia de verdade, virtude e alegria, acordará no caos tempestuoso, na eterna meia-noite – e não virá manhã, nem mão salvadora, nem Pai Eterno! Mortal que estás a meu lado, se ainda vives reza para Ele: caso contrário, perde-lo-ás para sempre.
Quando caí de joelhos e olhei para o brilhante universo, avistei os anéis eriçados da imensa obra da eternidade que se enrolara em torno do universo. Seus anéis caíram e ela o abraçou duas vezes. Cingiu então com mil voltas os mundos,apertando-os uns contra os outros – comprimiu o imenso templo do universo, reduzindo-o a uma igrejinha de cemitério – tudo estreitou-se, escureceu e adquiriu um caráter amedrontador – e um enorme martelo ergueu-se para bater no sino a última hora dos tempos e estilhaçar o universo…
Quando acordei, chorei de alegria, porque podia novamente rezar a Deus – a alegria, o chôro e a fé foram minha prece.
Quando me ergui, o sol tingia de púrpura as espigas maduras de centeio, lançando serenamente um reflexo avermelhado sobre a pequena lua que nascia no leste. Entre o céu e a terra, uma infinidade de dfêmeros insetos estendeu suas pequenas asas e começou a viver alegremente como eu aos olhos do Pai Eterno. E toda a natureza ao meu redor estava envolta em tons serenos como os de distantes sinos vespertinos.
Texto é da autoria de Jean Paul Friedrich Richte, escrito em 1796. Este texto demonstra as inseguranças do autor na existencia de Deus, mas principalmente a sua felicidade em poder voltar-Lhe a rezar.