Quarenta por cento dos japoneses são sintoístas, mas não existem, de fato, documentos escritos sobre a origem dessa religião, que significa “o caminho dos deuses”. Essa preocupação documental só começou a existir no século 6, quando os chineses introduziram a escritura e o budismo, fé de outros quarenta por cento da população.
Para se ter uma noção do que isso representa, basta voltar a atenção para um dos mais célebres mitos japoneses, que conta a história de Izanagi e a sua esposa-irmâ Izanami. Tal mito é o mito da criação, a cosmogonia. Eis, pois, sua importancia. Mas mesmo esse mito vem de um conjunto de textos posteriores introduzidos pelos chineses e quase não esclarece o pensamento dos japoneses antigos.
Esse fato por si só já demonstra o tamanho da influência chinesa dentro do Japâo, dificultando a separação das idéias estritamente nipônicas das provenientes da China. Alguns mitólogos inclusive vão afirmar que a junção das deidades masculinas com as femininas – como é o caso de Izanagi e Izanami – vem da idéia chinesa do yin e do yang. Os chineses acreditavam que estas duas forças, opostas, dicotômicas se influenciavam reciprocamente mas sem nunca entrar em conflito, pois havia uma harmonia precária existente. Acreditavam ainda que se essa harmonia fosse quebrada ou mesmo perturbada muitos desastres poderiam ocorrer.
Mas falemos mais do sintoísmo. Essa religião é o sistema de crenças mais antigo do Japão. Existia antes do budismo e dos ensinamentos de Confúcio. O sintoísmo, porém, nunca se converteu numa religião unificada, com mitologia própria. Há razões para isso: o sintoísmo foi uma mistura de várias crenças, como o chamanismo proveniente do noroeste asiático ou o animismo dos ainu, os primeiros habitantes. Não poderia, portanto, ser uma crença homogênea. Um outro fator seria a de que entre os japoneses persistiu o sistema tribal. Assim sendo, as comunidades tribais, que viviam isoladas nos vales ribeirinhos, mantiveram as suas tradições mesmo depois do desenvolvimento do governo central, no século 7.
O príncipe herdeiro Shotoku Taishi (572-621) foi o responsável por estabelecer um sistema regular de governo que se baseava no modelo chinês (eis, pois, a primeira influência significativa daquele país). A afirmação é, entretanto, incompleta pois ele fez mais que isso: o príncipe se preocupou com a organização humana, com o comportamento humano. Seu pensamento tornou-se célebre. Para ele três crenças solidificavam o Japão. E ele comparava essas três religiões com uma árvore: o sintoísmo era a raíz primária, presa fortemente ao solo fértil das lendas populares; o confucionismo era o tronco e os ramos robustos da ordem social e da sabedoria. O florescer do espírito era alentado pelo budismo, cujos frutos posteriores incluem o zen. Essas três crenças se sustentaram mutuamente até o início dos conflitos políticos do século 14, quando as disputas religiosas se em deplorável elemento das guerras civis.
O sintoísmo, porém, sempre foi o núcleo do culto nacional, dado que os japoneses consideram que a família imperial descende diretamente de Amaterasu, a deusa do sol. Mesmo hoje é a deidade suprema do panteão e os seus veneradores acreditam que seja responsável pela fertilidade e boa sorte da nação.
Embora não se possa falar muito sobre as primeiras crenças do sintoísmo, o mito posterior de Izanagi e Izanami ressalva uma de suas grandes preocupações: a morte e a desintegração física. Diz a lenda que Izanami morreu enquantodava à luz a Kagutsuchi, o deus do fogo. Sofrendo muito, Izanagi foi buscá-la nos infernos. A deusa o recebeu na porta e pediu-lhe duas coisas: que esperasse enquanto ela própria selibertava e que não a olhasse de perto. Quando a deusa se afastou, o deus acenteu uma vela para iluminar melhor o corredor escuro que se seguia depois do portão. Foi quando viu, então, o corpo putrefato recoberto de vermes de sua esposa-irmã. Ultrajada e humilhada, Izanami pediu às bruxas da morte que levassem seu marido. Assim foi feito.
Algumas pessoas podem achar esse relato parecido com o mito grego do músico Orfeu. Não é. Quando este transgrediu a petição da amada Eurídice e a olgou ao antes de sair dos infernos, ela se converteu em um espectro de névoa e desapareceu para sempre.
A religião que “se opõe” ao sintoísmo é o butsudo, “o caminho de Buda”. Tal fé desenvolveu uma mitologia separada da presente no sintoísmo. O budismo, como se sabe, é uma crença importada tanto da Índia como da China. Os japoneses, porém, introduziram nela elementos próprios – eis, portanto, o porquê de uma mitologia diferente do sintoísmo.
Um bom exemplo disso é a conversão de Jizo Bosatsu em figura fundamental que consola os mortos. É representado como um monge de rosto afável, com a cabeça raspada, vestido com uma longa túnica e segurando um bastão em cuja extremidade existiam anéis luminosos. Acredita-se que tem a capacidade de redimir as almas de seus pecados e, portanto, retirá-las do inferno, levando-as aos céus. De maneira semelhante, o bodhisattva Ksitigarbha (útero da terra) não foi muito popular na Índia, pátria de Buda, mas a sua relação com o julgamento dos mortos atraiu os budistas chineses e posteriormente os japoneses.
Autoria desconhecida. Recebido por email.