O Senhor dos Ventos

Naquele ano as geadas transformaram a paisagem. Não mais o inverno de tons verde-escuro a que estava acostumada a ver, mas um exibir de folhas secas que ameaçavam cair das árvores. O sol continuava a impor seu brilho, o céu, um azul claro e belo, fazia esquecer o cenário quase triste da terra.

Pela vidraça da biblioteca, ela parecia olhar o horizonte sem nada enxergar.

Atrás de si, livros e mais livros, jogados ao chão, sobre a escrivaninha, outro aberto sobre a cadeira almofadada. Silêncio, silêncio nos livros, silêncio no coração. Portas fechadas, ali sentada percebia que a única coisa a olhar era um inerte e estático mundo.

Eis que ele, imponente e intruso, invade aquele espaço antes tranqüilo, abre a janela, desalinha os cabelos cacheados da menina, que o olha, num primeiro momento, com temor e espanto. O silêncio desaparecera por completo com sua chegada, coisas caíram ao chão, a vela um pouco gasta, usada na leitura da noite anterior, o dicionário, o porta-retratos com uma foto tirada no dia de seu aniverário – bonita foto, ela em primeiro plano, ao fundo uma capelinha cercada de árvores, cena delicada.

– Quem é você que invade o meu mundo? – pergunta a menina, com certa irritação.

– Eu? Eu sou o Mestre dos Ventos – responde vagamente.

– De onde vem? – insiste a menina.

Ele continua vago: – Quem sabe? Do norte, do oeste, nem eu sei. Acho que dados precisos e informativos transformam a vida numa chatice sem fim. Como percebe, sou um ser fantástico, não dependo de coisas comuns e terrenas como dados.

– Nunca li sobre você em nenhum de meus livros e nem sobre algo semelhante.

– Só apareço para pessoas tão sensíveis como eu, por isso poucos me conhecem.

Então o Mestre dos Ventos caminhou pela biblioteca e com leves sopros folheou os livros, o que a incomodou.

– Não acho que seja sensível, acabou de dizer que não gosta de dados, de livros.

– Disse que não gosto de repetir dados enfadonhos, não disse que não gosto de livros…

– Os livros contém dados também, consequentemente… – continuou ela.

– Sou apaixonado por livros, mas só pelos que trazem frases fortes e precisas, dessas que surgem na mente de escritores célebres.

Ela continuou sentada, olhando fixamente para o intruso. Quando seus olhares se encontraram, perguntou: – O que faz todos os dias além de desarrumar a vida de quem está no seu caminho?

Mestre dos Ventos olha em torno. – Baguncei tudo, desculpe-me. Sou desajeitado, faz parte do meu destino, você entende. Mas, o que perguntou mesmo?

– O que faz além de…

– Ah! Sim. Eu digo aos ventos para que lado devem soprar.

– Como é possível ter tanto poder, olhar o mundo lá do alto, comandar a direção dos ventos?

– Parece uma tarefa complicada, mas é simples, como tudo o mais na vida. Vê aquela árvore? Depende de mim e de meus companheiros para deixar cair suas últimas folhas secas. Em breve ela estará com folhas novas e flores. Adoro flores. Incomodo se ficar mais um pouco? Já baguncei os seus livros mesmo!

– Pode ficar. Quer se sentar?

– Não, obrigado. Não consigo ficar parado, tenho que estar de lá para cá de cá para lá.

Mestre dos Ventos se sentia aflito naquele lugar. Não sabia porque tinha pedido para ficar, não que houvesse algo de errado, mas justamente porque gostara de, pela primeira vez, permanecer em um canto da terra. A permissão da menina o perturbara, ele ficaria, só mais um pouco, até entender o que estava acontecendo.

A menina, depois de algum tempo de silêncio, interrompeu os pensamentos e indagações do senhor dos ventos.

– Gostaria de lhe mostrar meu mundo, quero dizer, o meu jardim.

– O que pode ter no seu pequeno mundo que eu já não tenha visto no meu vasto universo?

A pequena diz com convicção: – O gelo que caiu do céu queimou as plantas do jardim. Quero lhe mostrar os pequenos brotos que começam a despontar nos galhos. É uma forma de agradecer aos seus súditos, os ventos, e a você por terem feito as primeiras folhas secas cairem.

Sorridente, Mestre dos Ventos responde: – Vamos lá conhecer o seu jardim; nunca tenho tempo para ver essas coisas, mas prometo ser ameno enquanto estivermos passeando entre as plantas – e se deixou conduzir pela menina, apesar da sensação incômoda de antes ainda persistir.

Pensava numa resposta para estar ali, desperdiçar aquele tempo precioso com a garota, abandonar por instantes o poder para conhecer um jardim sem flores, calmo e tranqüilo, mas sem flores. Estaria ele tomado de alguma tristeza ou angústia? Sentia falta de algo, queria saber o quê. Concluiu que era a dualidade, sentia falta da dualidade que o fazia ordenar aos ventos que levassem chuvas a lugares onde a estiagem destruía a paisagem e a alma das pessoas e, ao mesmo tempo, o fazia temido por reunir o ventos da terra para formarem um grande e destruidor tornado. Onde estava a dualidade? Ao lado da menina, em meio às pequenas plantas que ainda se mantinham vivas, cedera lugar a novos e confusos sentimentos, mais poderosos do que ele.

Ventos de terras longínquas vieram para levar o Mestre de volta ao poder mas naquela estação ele aprendera a ser ameno, tornara-se um brisa suave e constante, que deixava os cabelos da menina em belo desalinho, com fios em todas as direções, como a rosa dos ventos.


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